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Por que celebramos a morte de nossos próprios filhos?

Padre Paulo Ricardo › 21/06/2018

Como explicar tantas pessoas comemorando o que, por qualquer um minimamente consciente da verdade do aborto, seria de se chorar e lamentar?

Depois de o aborto ser legalizado por referendo na Irlanda, na última semana foi a vez da Argentina. Com a diferença de que, aqui, na América Latina, o aborto foi aprovado pelos deputados (falta ainda a ratificação do Senado). Em ambos os casos, no entanto, as mesmas cenas se repetiram: inúmeras mulheres nas ruas celebrando a futura morte dos próprios filhos.

A razão de ser desta matéria é, mais do que qualquer outra coisa, comentar essa estranha reação.

Poderíamos falar aqui do número de abortos que — ao contrário do que a mídia mentirosamente propaga — certamente aumentará na Argentina, assim como aumentou no Uruguai e em inúmeros outros países onde o aborto foi despenalizado. (Isso, é claro, se o projeto passar também no Senado, como já dito.) Poderíamos desenvolver toda uma argumentação respondendo, uma a uma, as farsas relacionadas com a legalização do aborto. Poderíamos falar, ainda, da principal organização por trás dessa ação na Argentina, que não, não é o movimento feminista, mas sim o Fundo Monetário Internacional.

Mas o impacto de um punhado de jovens mulheres festejando a descriminação do aborto é forte demais para que falemos de outra coisa. Como explicar tantas pessoas comemorando o que, por qualquer pessoa minimamente consciente da verdade do aborto, seria de se chorar e lamentar? O que explica uma geração — a nossa, no caso — que faz festa com a autorização para seres humanos inocentes serem assassinados no ventre de suas mães?

Procuramos fornecer uma espécie de resposta a essa pergunta quando comentamos o caso da legalização do aborto na Irlanda. A grande razão para comemorações como essa deve ser procurada em um obscurecimento — quando não em uma completa negação — do direito naturalO que é errado não pode tornar-se certo, o que é mau não pode tornar-se bom por força de lei. As pessoas só chegam a celebrar o mal, portanto, se antes o relativizaram.

O Papa São João Paulo II havia notado esse mesmo problema quando escreveu, 23 anos atrás, que:

Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e abjurável.

[…] Mas hoje a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cômodo, nem à tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a censura do Profeta: “Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas” (Is 5, 20). Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia ambígua, como “interrupção da gravidez”, que tende a esconder a verdadeira natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este fenômeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e direta, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento. [1]

Trocando em miúdos, as inúmeras pessoas que — tanto na Irlanda, quanto na Argentina — foram às ruas para manifestar a sua aprovação ao aborto, fizeram-no achando que estavam a celebrar um bem.

Com isso já é possível compreender o quão perigoso é dar às consciências o primado da razão, como se o ser humano pudesse autonomamente decidir o que é certo e o que é errado, sem referência a nenhuma moral objetiva. Contra essa ideia relativamente bem difundida (às vezes dentro da própria Igreja), cabe dizer: o que importa ao ser humano não é simplesmente “seguir a própria consciência”; antes, é necessário que nos preocupemos em formá-la da maneira correta, procurando adequá-la à realidade das coisas, sob o risco de que nos tornemos tiranetes, sonhando em “mudar o mundo” só para que ele caiba nas loucuras que nós mesmos inventamos.

Essas loucuras nossa época inventa para não ter de se confrontar com a verdade. À parte aquelas pessoas realmente enganadas por maus professores e pela manipulação midiática — cujo número não se pode subestimar —, o que boa parte dos que defendem a despenalização do aborto quer é uma “válvula de escape” para viver a vida como bem entende, sem enfrentar o incômodo de lidar com as consequências dos próprios atos.

Sim, porque — gostem ou não — a grande responsável por estarmos festejando a morte de nossos filhos chama-se “mentalidade contraceptiva”. O Papa São João Paulo II mesmo aludiu a ela quando afirmou, em relação ao crime do aborto, que “uma responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade” [2].

A nossa sociedade, antes de matar os filhos nos ventres de suas mães, mata-os na própria mente, em seus planos de vida, no modo como se relaciona sexualmente.

Filhos normalmente não são queridos, mas, quando o são, não devem passar de um ou dois. Pensar em filhos, para a nossa época, tão habituada a viver o sexo fora da família, é viver em pavor constante. Os homens não os querem de jeito nenhum, porque não querem responsabilidade; as mulheres entram na mesma onda e temem que a maternidade lhes roube a liberdade e a beleza física… Quando a criança já foi concebida, então, o que resta à nossa sociedade irresponsável, senão pedir às autoridades que risquem da lei penal o crime do aborto — como fizeram na Irlanda, estão fazendo na Argentina e alguns ministros do STF não vêem a hora de fazer também no Brasil?

Os países que legalizaram o aborto comprovam: quando essa prática é descriminada, o seu número não diminui; pelo contrário, transforma-se em método “contraceptivo” — com a diferença de que preservativos frustram a vida antes de ela existir; o aborto faz isso depois, ou seja, mata.

Quando um país decreta, portanto, que seus filhos podem ser mortos antes de nascer, muito antes está a ideia — menos grave, sim, mas nem por isso inofensiva — de que seus filhos podem ser mortos antes de ser concebidos. Essa mentalidade é a primeira inimiga da vida intrauterina e, a longo prazo, a única maneira de recuperar nossa civilização é mudando completamente a cultura antinatalista em que estamos imersos.

Até lá, todo e qualquer remédio será sempre paliativo. Até lá, ainda assistiremos a muitas pessoas, tragicamente, comemorando a futura morte dos próprios filhos.

Referências

1. Papa S. João Paulo II, Carta Encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 58.
2. Id., n. 59.

Por Padre Paulo Ricardo

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