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Como podemos falar sobre a morte com as crianças?

Canção Nova › 01/11/2019

As crianças são espirituais e elas entendem além do que a razão adulta consegue compreender

Para sabermos como falar com as crianças a respeito da morte, antes precisamos saber como nós pais lidamos com ela. Somos de outro tempo. Quando éramos crianças, os falecidos eram velados em suas próprias casas, e quem trocava a roupa, fazia a barba do falecido, geralmente, eram os filhos ou alguém muito próximo. As crianças estavam presentes, correndo em volta da casa e do caixão. Os velórios reuniam um grande número de pessoas, que ficavam o tempo todo acompanhando a família, muitos amigos permaneciam a noite inteira.

Muitas das vezes, não se morre mais em casa, mas sozinho nas UTIs. Assim, perdemos o momento “máximo” da vida de uma pessoa. Uma querida amiga pôde estar presente na UTI quando o marido morreu, e ela me disse que foi um dos momentos mais lindos da vida dela, um momento inexplicável, que deveria ser imperdível. Ela não conta isso aos parentes, com medo que pensem que ela é louca.

Aprendizes dos sentimentos humanos

Há uns 25 anos, quando eu era estudante, fizemos um estudo cujo título era: “O culto aos mortos continua sagrado?”. Íamos ao cemitério, computávamos o tempo que as pessoas permaneciam nos velórios, o tempo das visitas aos túmulos e observávamos as emoções. Éramos aprendizes dos sentimentos humanos. Já naquela época, comparando com estudos mais antigos, observamos que o tempo de permanência das pessoas tem diminuindo a cada ano que passa.

Hoje, muitas pessoas passam para dar um abraço e ficam entre 10, 15 minutos; então, seguem suas vidas. Isso tudo é uma pena, porque a morte nos coloca em xeque a respeito do sentido da vida. É um momento de parada, é inevitável não pensar, diante de um caixão, na própria morte ou na morte de alguém muito querido.

A criança sabe do sobrenatural, porque ela é espiritual

E quanto às crianças? Ficavam em volta, brincavam, mas também observavam o que acontecia. Ninguém me ensinou sobre a morte, ninguém nunca falou a respeito dela, mas como nós fazíamos parte de todo esse “sagrado”, de todo esse ritual, simplesmente a gente entendia. Entendíamos que era um momento de muita dor. Eu, por exemplo, vi meu pai chorando o velório inteiro ao lado do caixão de meu avô, quando eu era bem pequena. Por dentro eu me perguntava: “Por que eu não estou chorando?”.

Só mais tarde, quando cresci, entendi que a dor de um adulto é diferente da dor da criança; primeiro, porque a criança não tem noção sobre o tempo, ela não entende que o avô partiu e nunca mais vai voltar. Crianças pequenas não têm noção do quanto é uma semana, um mês, dez anos, muito menos do nunca, e isso suaviza a dor. Mais bonito e surpreendente é que a criança é espiritual e entende além do que nossa razão adulta consegue compreender. Ela sabe do sobrenatural, porque ela é espiritual.

Não se fala de morte

É uma pena que o evento morte esteja cada vez mais escondido, camuflado. O velório já é dentro do cemitério, os cemitérios parecem grandes jardins, os cortejos desapareceram das grandes cidades ou se camuflam no meio do trânsito. Enfim, nos nossos tempos modernos, não se fala de morte, camufla-a, e quando se fala, é em meio a tragédias e assassinatos, o que deixa a imagem da morte sempre muito negativa.

Lembro-me, perfeitamente, do meu avô doente na casa dele, no seu quartinho. Houve um momento em que ficamos a sós, ele olhou para mim e falou: “O vovô vai morrer”. Eu, querendo animá-lo (embora soubesse que no fundo aquilo era verdade), disse: “Não, o senhor vai ficar bom logo!”. E ele, olhando-me nos olhos, disse: “Não! O vovô não vai ficar bom”.

Enfim, alguém chegou no quarto e ficamos calados, foi o nosso segredo. Ele me preparou para a morte. No dia em que ele morreu, minha mãe veio me acordar de manhã para me contar, e ela não precisou falar uma palavra. Eu sentei na cama e disse: “Já sei, vovô morreu”. Sou grata por meu avô ter tido a coragem que meus pais não tiveram.

Paradoxo da vida

Tive a oportunidade de entrevistar a tanatóloga Wilma Torres (já falecida), a qual, durante toda sua vida acadêmica, estudou sobre a morte. Era seu trabalho. Quando perguntei se isso afetava, de alguma forma, a vida dela, respondeu: “Pelo contrário, quanto mais estudo a morte, mais aprendo a viver”. Acho que isso nos ajuda a fazer as pazes com a morte, ressignificar dentro de nós mesmos o seu sentido. Só assim saberemos como falar sobre ela com nossos filhos. Ela é o grande paradoxo da vida.

Ricardo Petrarca, autor do livro ‘A chama e a morte’, cita frases belíssimas ditas pelos índios Guaranis, com quem conviveu por algum tempo: “A morte é um ser, é irmã da noite e do silêncio. Ela gosta de ficar perto do nosso coração, e fica muito triste quando não gostamos dela. Como ela mora em nosso coração, então a pessoa que não gosta dela fica triste também. A morte e a vida são geminadas, irmãs gêmeas. Você perdeu um parente, parte de você morre. Fica um lugar como uma caverna, mas essa caverna pode ser um caminho para a vida”.

A beleza da morte

O coração das crianças tem a simplicidade e a sabedoria semelhantes à profundidade e sabedoria do povo indígena. Elas saberão ver a beleza da morte. Se tiverem histórias bonitas para contar sobre a morte (como a minha com meu avôzinho), contem para seus filhos, isso os prepara. As crianças são geniais, são muito capazes de imaginar a cena que descrevemos ao contar nossas histórias. A criança não pode ver a morte como um monstro, como uma inimiga, porque ela não é, a morte faz parte da vida.

A primeira vez que levar seu filho a um velório, explique, antes de chegar ao local, que ele verá pessoas chorando, um caixão onde estará deitado quem faleceu, flores… Diga que isso é normal e que está tudo bem, que é assim mesmo. Não devemos forçar a criança a nada, como pegar na mão do defunto. Se perceber algum tipo de ansiedade na criança, fique um pouco do lado de fora, fique um pouco mais afastado, devagarinho ela mesma vai se aproximando, no tempo dela.

Um pedaço do céu

Fundadora do Movimento dos Focolares, Chiara Lubich preferiu morrer em casa, deitada na sua cama, em seu quarto simples, diante da imagem de Jesus Abandonado. As pessoas, os consagrados, jovens que faziam parte do movimento, fizeram uma longa fila para passar diante dela, e muitos apenas agradeciam, e ela os olhava profundamente nos olhos. Era a despedida, neste caso, um pedaço de céu. Não havia desespero, mas paz.

(Adriana Potexki é formada em Psicologia. É terapeuta certificada pelo EMDR Institute, palestrante internacional e blogueira do site ‘Sempre Família’, do Grupo GRPCom)

Por Canção Nova

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